BISBILHOTAR LISBOA
- casaemconta
- 10 de mar. de 2018
- 4 min de leitura
Atualizado: 14 de nov. de 2023
Há lugares em Lisboa que nasceram com o propósito de serem visitados apenas pelos mais bisbilhoteiros. São espaços lendários carregados, por isso, de história e tradição. São lugares onde apenas alguns têm a ousadia de ir e redescobrir. Falo de tesouros como são o Jardim do Torel ou a Calçada de Santana.
Passeando avenida acima, avenida abaixo, nem todos nos apercebemos que uma das paralelas da grande rua, que liga o Marquês de Pombal ao Chiado, nos leva a um dos lugares mais mágicos de Lisboa. O jardim do Torel está a escassos passos da Avenida da Liberdade. Não chega a dois minutos, se subirmos pelo Ascensor do Lavra, considerado Monumento Nacional desde 2002. São dez da manhã, o termómetro subiu apenas até aos 11ºC, mas o sol de Lisboa presenteia-nos com os raios que fazem do nosso Inverno uma estação diferente das demais capitais europeias. Corro para apanhar o eléctrico e qual não é o meu espanto quando entro e me deparo com todos os bancos vazios. Que privilégio penso. No entanto, perplexa e com uma justa desconfiança, interrogo o motorista sobre esta estranha ausência de pessoas, e principalmente de turistas. No comando do funicular inaugurado em 1884, o homem de poucas palavras explica-me que é normal não haver ainda ninguém, é Domingo e ainda muito cedo. Seguimos viagem. Contrariamente ao que acontece nas escadas paralelas ao eléctrico, os grafitis mal desenhados e sem um propósito válido empobrecem o percurso que liga o Largo da Anunciada ao Torel.
Lá em cima, a tranquilidade é também a palavra de ordem. Parto ao encontro da Calçada de Santana e levada pelos traços deste bairro tão português desço e volto a subir a rua atenta nos pormenores. À excepção de uma casa funerária e de dois cafés, os estabelecimentos encontram-se todos encerrados. De uma das perpendiculares da calçada surge uma senhora já de idade que aproveitou a manhã de Domingo para passear os seus dois cães. Apresso o passo e questiono-a sobre tamanho sossego. Residente na Calçada de Santana há dezenas de anos justifica-o também com o dia da semana. Orgulhosa e bairrista, não poupa elogios ao lugar que a viu nascer. “A Calçada faz parte dos roteiros turísticos da cidade, foi aqui que nasceu a Amália e dizem também que ali no nº139 viveu Camões. Hoje está mais parado porque a polícia cortou o trânsito, dizem que a chaminé ali daquele prédio velho está em risco de cair. Mas não é sempre assim, durante a semana há muitos turistas”, assevera. O cantar dos pássaros é interrompido por uma das canções de Tony Carreira. Minutos depois, é o sino da igreja que se faz ouvir, transportando-me para a minha terra Natal, onde este marca uma presença forte de hora a hora. No cimo da calçada, mais precisamente no número 177 funciona o “Espaço Pessoa”, entro e encanto-me. Mais em cima, no nº 180 está o Inatel, e ao lado, a “Lavra Guest House”, procurada maioritariamente por jovens estrangeiros. Continuo a minha viagem na direcção do Jardim do Torel. Desço pela rua onde está a casa onde viveu Venceslau de Moares (1854-1929) um escritor português verdadeiramente apaixonado pelo Japão e pelos seus costumes, até chegar ao Torel Palace, um palácio do séc XX transformado recentemente numa unidade hoteleira de luxo.
Segue-se a refeição no restaurante que pertence à Associação da Juventudeda Galícia, mesmo ao lado do tão ansiado Jardim do Torel. À porta está o Sr.Eduardo, um dos empregados do restaurante cujo sotaque denuncia a sua nacionalidade fiel ao nome do estabelecimento. “Filho” da casa galega há quatro anos, não se mostra intimidado quando lhe pergunto quais os pratos típicos do restaurante: o polvo à feira, o bacalhau, a tortilla, o pimento e a paella. Numa visita rápida ao espaço de refeições foi impossível não por os olhos nas mesas, a meu ver, um pouco fora do comum. “Isto era um edifício que tinha cavalos e então nós apróveitámos as cavalariças para decoração da casa”, explicou, sorrindo, o Sr. Fernando. Não me deixou vir embora, sem antes lançar o repto que denunciava toda aquela tranquilidade que eu vinha a assistir desde bem cedo: “escreva, escreva e veja se consegue atrair mais turistas cá para cima”.
No torel, sete dos nove bancos estão ocupados por leitores. Leitores de fim de semana, escritores de profissão…não sei, acredito que, seja qual for a sua motivação, este é o espaço ideal. Posiciono-me exactamente do modo que nos sugere a disposição dos bancos: com os pés sob a cidade. É debruçada sobre a Avenida da Liberdade e aconchegada pelos raios acalorados do sol que me deixo envolver na paisagem. Estou no Jardim do Torel. Do outro lado, avista-se a colina de São Roque. Um enquadramento de amarelos sobressai sobre a grande mancha de edficios da Lisboa antiga maioritariamente pintada de branco do lado esquerdo e de rosa do lado direito. Na memória fotográfica fica o elevador da Glória, “resguardado” por dois edifícios da época também da mesma cor. O enquadramento é perfeito, ofuscando-me de outros pormenores que por ali possam existir. Ao fundo, do lado esquerdo, o Tejo transmite-nos a sua habitual tranquilidade. Sinto-me, como em poucos lugares da cidade, completamente submersa na paisagem.Aconchego-me no banco. Fecho os olhos. Cheira bem, cheira a Lisboa.
Há lugares em Lisboa que nasceram com o propósito de serem visitados apenas pelos mais bisbilhoteiros. São espaços lendários carregados, por isso, de história e tradição. São lugares onde apenas alguns têm a ousadia de ir e redescobrir. Falo de tesouros como são o Jardim do Torel ou a Calçada de Santana.

Porque em Lisboa há muito mais para ver que a rota do amarelinho 28!





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